O inferno não são só os outros

A pessoa que só olha para si, sempre vai ter certeza de que está certa e vai gritar, rosnar e agredir da forma que lhe for peculiar.

Um dos personagens da peça de teatro Entre Quatro Paredes, de Jean-Paul Sartre, diz que "O inferno são os outros". Muitas pessoas nunca conseguem se enxergar como parte do problema ou, ainda, como a origem dele e são hábeis em identificar o erro alheio ou o quanto a outra pessoa é capaz de fazer errado. Pior, o que o outro faz justifica os seus próprios erros e sofrimentos. A lógica do "eu erro porque ele(a) me leva a isso" é uma fuga colossal de qualquer responsabilidade, mas, também é uma injustiça com o outro. As pessoas, críticas de tudo e de todos, precisam sempre desqualificar o outro para poder mostrar a si mesmas e ao mundo que são melhores. Normalmente são pessoas inflexíveis, que não suportam a ideia de estarem erradas perante o próprio julgamento ou dos outros, cuja origem pode ser a formação repressora, rígida e com os elementos culpa e castigo muito presentes na infância. Mitos, lendas, histórias inocentes, religião e chantagens emocionais são mais alguns componentes para criar um tribunal interno onde nada pode passar sem punição. Quando adultos, sem a firmeza dos pés no chão e com o vício e a necessidade de avaliar criticamente tudo que está à sua volta, têm a autoestima sempre no limiar inferior e a transferência da origem dos problemas para o outro apenas revela o medo de olhar para si próprio. Quando a pessoa olha para si mesmo e não gosta do que vê, pode projetar no outro sua frustração. Declarações do tipo: "eu sou assim por sua causa" ou "eu só fiz assim por sua culpa" são expressões que traduzem a transferência de responsabilidade e, ainda, uma forma de fugir da autopunição. Ora, se a pessoa julga e condena determinada ação do outro, como a aceitaria para si mesmo?

A posição de "dono(a) da verdade" é outra distorção que pode vir a reboque e faz pensar que "eu estou certo e posso fazer isso, mas o outro não". Um mecanismo de proteção dá o aval para que ela tenha respaldo para transgredir as próprias regras sem se punir. Esse "eu posso" encontra respaldo em algum valor universal, como a honestidade, a sinceridade, elementos que ela não identifica de forma satisfatória no outro. A pessoa só vê a si mesmo e às próprias crenças (sentido amplo) como o padrão universal e não consegue ter empatia por ninguém. Ela vê no outro a origem e fim de todos os seus problemas.

Com toda certeza o outro tem participação em quase tudo que ocorre...

O rito de crítica-julgamento-sentença-punição é o seu dia-a-dia e a chance de o outro ser o culpado é quase total. Seu desgaste vai ser sempre gigantesco para provar ao tribunal que ela não tem nada a ver com o que está acontecendo. A pessoa que só olha para si, sempre vai ter certeza de que está certa e vai gritar, rosnar e agredir da forma que lhe for peculiar. O outro - o "réu" - será alvo de críticas ainda maiores, sendo chamado de infantil, mimado, fraco, coitadinho e de qualquer adjetivo pejorativo que o desqualifique. Ela dirá que o outro está sempre fazendo o papel de vítima não percebendo que pode ser vítima dela mesmo. É um círculo vicioso e que só termina quando o crítico-juiz de tudo, num momento de clareza, consegue ver o quanto é inflexível e quantos erros comete. Isso pode levar anos ou nunca chegar. Quando o outro se dá conta, está vivendo a vida desse "eu" manipulador, que só vê a si mesmo, mas que diz que só tem olhos e ações para o outro. A sua vida passa a ser contemporizar, entender, aceitar, orar, pedir ajuda, sofrer, tudo para garantir o relacionamento com o "dono(a) da verdade". Com toda certeza o outro tem participação em quase tudo que ocorre, mas nem sempre é o total culpado por todos os dissabores, mas, têm alguma tendência a sentir culpa, acabam introjetando realmente são o problema.

A responsabilidade que se pode jogar para o outro muitas vezes é desmedida e, quando este quer crescer, primeiro terá de vencer a própria culpa de estar tentando evoluir sem desagradar. Nesse momento, como dificilmente a evolução de ambos é simultânea, o outro tem de exercitar a tolerância, a compreensão e a resiliência. Não é nada fácil viver isso, pois o questionamento sempre vem à tona para fazer titubear e refletir se o que estamos fazendo está certo. Não se acerta sempre, mas também não se erra sempre. É preciso aumentar o autoconhecimento sem medo do que vai encontrar, pois o inferno não são só os outros que constroem.


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